Enoque: Aquele que ia e vinha com Deus
- devaciribeirosilva
- 13 de jun. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 29 de jun. de 2020
Por que Enoque foi arrebatado? Por que o relato sobre este personagem é tão breve? Por que personagens importantes da Bíblia como Moisés ou Abraão não tiveram o mesmo destino?

Quando se sabe que o relato bíblico aponta apenas dois personagens que tiveram o privilégio de, em meio à vida, terem sido “tomados por Deus”, de forma que não conheceram a morte física – tal como os relatos sugerem – é comum reagir a esta informação procurando pelas credenciais destes personagens que permitam entender a causalidade de tal episódio.
Nenhum feito heroico, nenhuma obra memorável, nenhuma realização digna de destaque. De Enoque se diz apenas duas coisas, à parte de seus atributos genealógicos: ele andou com Deus; e Deus o tomou para si.
Algumas reflexões sobre Enoque para a vida cristã
Quando se sabe que o relato bíblico aponta apenas dois personagens que tiveram o privilégio de, em meio à vida, terem sido “tomados por Deus”, de forma que não conheceram a morte física – tal como os relatos sugerem – é comum reagir a esta informação procurando saber o que esses personagens fizeram de especial ou o que os fazia especiais. Enoque e Elias – Aqui estão são os privilegiados por não terem conhecido a morte, pois foram trasladados por Deus. A despeito de qualquer teoria escatológica que os abarque, é no contexto que os cercava que se deve procurar o motivo de seu arrebatamento. Voltemo-nos para a narrativa bíblica. Contudo, nossa atenção se voltará para Enoque.
Por que Enoque foi arrebatado? Por que o relato sobre este personagem é tão breve? Por que personagens que tiveram tanto destaque na Bíblia, como Moisés, Abraão ou Paulo não tiveram semelhante destino? No início de minha caminhada cristã ficava intrigado com a narração acerca de Enoque. Gênesis não gasta mais que sete versículos para descrevê-lo. Em Hebreus o relato se resume a um único versículo. O mesmo acontece quando Enoque é mencionado em Judas. No livro de Gênesis, Enoque aparece como que um acidente na genealogia de Adão a partir de Sete – apenas um elo que não poderia ser prescindido para ser fiel a tal genealogia. Todavia, neste mesmo texto é o único, além de Noé, que recebe um tratamento particular. Contudo, não mais que sete versículos!
Nenhum feito heroico, nenhuma obra memorável, nenhuma realização digna de destaque. De Enoque se diz apenas duas coisas, à parte de seus atributos genealógicos: ele andou com Deus; e Deus o tomou para si. Esta é a questão: de Abraão, Moisés, Davi, Ezequiel, Daniel e tantos outros se diz muito mais; parecem à primeira vista muito mais dignos de um acontecimento no nível de um arrebatamento. Através destes, grandes feitos se fizeram; suas vidas, cheias de proezas e acontecimentos fantásticos exigiram narrativas que se desdobraram por muitos capítulos da Bíblia. Então, se Enoque era, assim, tão especial, por que o relato bíblico não lhe reservou mais espaço? É a partir destas indagações que se dá início esta reflexão. É verdade que, quanto menos se sabe a respeito de algo ou de alguém, mais se aventa em especulação. Talvez, seja este o motivo de terem surgido tantos pseudoepígrafos em nome de Enoque. Todavia, podemos estabelecer algumas conclusões que servirão de base para uma dialética na qual se dará oportunidade de repensar nosso próprio caminhar cristão. Segue-se, então, seis pontos de uma reflexão acerca de Enoque.
Seis pontos relevantes sobre o personagem Enoque para a vida cristã
Nossa análise se baseará apenas no relato de Gênesis e na sua referência em Hebreus, sem levar em conta o que se diz de Enoque nos pseudoepígrafos e nas lendas que se tem sobre o seu personagem.
1.Feitos heroicos não são necessários para sermos agradáveis a Deus
Para sermos agradáveis a Deus não é necessário realizar um feito de destaque – basta, tão somente, andarmos com Ele. Vivemos numa cultura que aprecia heróis. Na perspectiva ocidental e no tempo em que vivemos muito se apregoa que viver no anonimato é simplesmente inaceitável. Nada de viver sem um feito memorável, sem realizações de destaque, sem empreendimentos louváveis e conquistas de atributos que nos coloquem à frente de outros. A vida que vale a pena ser vivida, nos ditames de nosso contexto, é sempre uma vida “acima da média”. Entretanto, para nossa decepção, de Enoque não se relata nenhum feito heroico, nenhuma obra ou feito espetacular enquanto viveu – nada que o fizesse parecer estar acima da média das pessoas de seus dias, tendo em vista os padrões humanos. O espetacular de Enoque se fez quando foi tomado por Deus, não enquanto vivia.
Nenhum gigante ao chão, nenhum mar se abrindo diante de si ou poderosos sinais realizados diante de um rei soberbo; nada de fogo caindo do céu, de exércitos vencidos, de sinais extraordinários. A sentença central no relato de Enoque é: “andou com Deus”. Não que os personagens bíblicos aos quais se atribuem estes feitos – tais como Moisés, Davi, Daniel e tantos outros – sejam inferiores ou não tenham agradado a Deus. O que quero dizer é que para agradar a Deus - a ponto de ser por Ele tomado - uma coisa é fundamental: andar com Ele. Este é o segredo. Nenhuma demonstração miraculosa é necessária; nenhum feito extraordinário aos olhos dos homens é requisito.
2. Ter um testemunho que agrade a Deus
Contudo, eis Enoque no rol dos heróis da fé em Hebreus 11. Mas foi herói porque andou com Deus. O versículo é o de número cinco da referência em questão. Ele acrescenta uma informação que nos leva ao segundo ponto: “Pela fé Enoque foi trasladado para não ver a morte, e não foi achado, porque Deus o trasladara; visto como antes de sua trasladação alcançou um testemunho de que agradara a Deus”. Um testemunho que agrade a Deus; ou um testemunho de que o agradamos – eis o segundo ponto. “Agradar a Deus” conforme o comentarista Champlin1 equivale à fórmula veterotestamentária “andar com Deus”. E observando que este versículo de Hebreus se agrega ao contexto de apresentação dos heróis da fé, temos um sinal de que andar com Deus, alcançando um testemunho que o agrade, equivale a nos submetermos a Ele em confiança, em fé. Paul Ricoeur2, comentando como o conceito de fé foi aprimorado através do profeta Jeremias, pontua que esta fé se tratava de “uma obediência desarmada”. Parece, à primeira vista, algo pequeno. Mas andar com Deus, em qualquer época, e, sobretudo, na nossa, equivale a um feito heroico.
3.Pessoas que andam com Deus quebram os padrões de normalidade e de rotina
O terceiro ponto é a conclusão a que se chega, quando lemos todo o capítulo 5 de Gênesis, no qual se encontra o relato sobre Enoque. Como foi bem colocado por André Wénin3, a genealogia de Adão, seguindo a linhagem de Sete, coloca a informação dos dez homens que dela fazem parte numa fórmula rígida: “X viveu tantos anos e fez dar à luz Y. E X viveu, depois de ter gerado Y, tantos anos e fez dar à luz filhos e filhas. E todos os dias de X foram tantos anos e ele morreu” (esquema apresentado por André Wénin, 2011, p 163). Um exemplo deste esquema é a passagem deste capítulo que abarca os versículos de 6 a 8: “E viveu Sete cento e cinco anos, e gerou a Enos. E viveu Sete, depois que gerou a Enos, oitocentos e sete anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias de Sete novecentos e doze anos, e morreu”. Toda a maneira de tratar os elementos da genealogia de Adão a partir de Sete permanece assim, até que se chega a Enoque.
Em vez de relatar que Enoque viveu, fazendo-o acompanhar o mesmo esquema ao que os demais elementos da lista foram submetidos, o narrador afirma que Enoque andava com Deus. Pessoas que andam com Deus quebram os padrões de normalidade e de rotina. Delas se relata algo além do esperado, algo diferente do que se previa. Eis o terceiro ponto. O que mais normal de se esperar de um homem, sobretudo de um patriarca, do que viver, gerar filhos e morrer? Mas esse não é o caso de Enoque. Ainda que o relato diga que tenha gerado ao menos um filho (Matusalém), o destino de Enoque, todavia, é viver menos em comparação aos outros personagens e depois, ser arrebatado por Deus. Até lá, dele se diz que andava com Elohim. Ele viveu menos, mas parece ter vivido muito mais intensamente para com Deus.
4.Andar com Deus é ir e vir com Ele
O quarto ponto dessa reflexão advém de um estudo mais acurado do vocábulo que em português se faz traduzir na maior parte das versões por “andou com Deus”. A expressão é halak (ir). Tomando uma tradução mais ao “pé da letra”, conforme Wénin, Enoque “ia e vinha com Deus”. Andar com Deus é ir e vir com Ele. Esse “ir e vir” pressupõe, pelo menos, mais três subtópicos:
Se Deus vai comigo é porque meu destino é também um lugar aprovado por Ele; é um lugar onde Ele também pode estar. Se Ele vai comigo é porque consinto em Ele ser minha companhia e porque me faço condição para que Ele seja meu companheiro. Deus abençoa a todos (Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos - Mateus 5:45), se faz “presente” a todos (afinal, Deus é onipresente e se não se fizesse presente até para com os maus, não lograria conhecimento para julgá-los), mas não anda com todos. Deus não anda com qualquer um – é preciso ter fé que se traduza em confiança para caminhar com Ele.
Se Deus vem comigo, se comigo Ele volta, é porque o lugar para onde volto, é permeado condições para que ali também Deus esteja comigo; eu também me faço condição e me entrego como condição para que Deus esteja comigo no meu espaço de intimidade.
Se vou e venho com Deus é sinal de que o meu percurso é compatível com a vontade de Deus, é agradável a Deus, se harmoniza com o percurso de Deus. Dizer tudo isso é, enfim, dizer que eu ando nos caminhos de Deus. Andar com Deus é andar nos caminhos de Deus.
5.Se podemos andar com Deus, é porque Ele primeiramente quis andar conosco
O quinto ponto ainda se utiliza do vocábulo halak. Segundo Wénin, a primeira vez que se emprega esse termo na Bíblia é ainda no livro de Gênesis, capítulo terceiro. Lá, o sujeito ao qual o vocábulo se refere é Elohim, o próprio Deus. Adonai Elohim é descrito como aquele que vinha passear (ir e vir) com o humano (Gênesis 3.8), demonstrando seu interesse de andar com ele. Se podemos andar com Deus, é porque Ele primeiramente quis andar conosco. Ele é o primeiro sujeito desse “ir e vir” que nos abarca.
6.Aqueles que andam com Deus não conhecem a morte
O último ponto encontra-se na consequência que o andar com Deus levou à Enoque: a trasladação. E nisto, este ponto será bem objetivo: aqueles que andam com Deus não conhecem a morte. Mais do que qualquer conotação escatológica e ainda que possamos visar, antes de tudo, à morte física, e em contrapartida, a vida eterna, devemos ter em mente a morte espiritual, a cegueira existencial. Quem anda com Deus supera a morte provocada por uma existência não consciente de si própria, cega para Deus, alheia ao próximo, faltosa do amor divino que encaminha para a verdadeira vida.
A vida de Enoque faz-nos lembrar de Jesus, e logo em seguida, para aquilo que também devemos nos tornar. Jesus era também aquele que ia e vinha com o Pai. Ele era tão íntimo do Pai que dizia: “Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai” (João 14:7). A meta do cristão é ser semelhança de Cristo. Ele deve ir e vir com Deus de tal forma que, olhando que quando olharem para ele, as pessoas tenham a oportunidade de conhecer a Cristo, de vê-lo em nós, e assim, conhecerem também o Pai. Porque andar com Deus é andar nos caminhos de Deus. É ir e vir com Ele. E como cristãos devemos ir e vir com Deus através de Cristo, pela sua graça.
Referências:
1. CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interprestado: versículo por versículo: Gênesis, Êxodos, Levítico, Números, volume 1/ 2ª ed. São Paulo: Hagnos, 2001.
2. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal – (Biblioteca de filosofia contemporânea; 45). Lisboa: Editora 70, 2015.
3. WÉNIN, André. De Adão a Abraão ou as errâncias do humano – Leitura de Gênesis 1,1- 12,4. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
Comments